PARA OS AMANTES DA FERROVIA
O silêncio e as majestades das sextas-feiras Santas
Carlos Heitor Cony
Nas Sextas-Feiras Santas do passado, os trens da Central do Brasil não
apitavam nem mesmo quando entravam ou saíam dos túneis espalhados pelo trecho
que ia de Belém, atual Japeri, até Mendes, subindo a serra do Mar com o esforço
de suas caldeiras alimentadas com o bom, o sólido, o inigualável carvão inglês.
Com a guerra, em 1939, o carvão importado foi
substituído por lenha nacional, que muito devastou florestas, fazendo da carne
de nossas árvores o alimento daquelas fornalhas escuras que produziam uma
fumaça esbranquiçada. Muitos trens não conseguiam subir a serra e precisavam do
reforço de uma locomotiva extra, que ia e vinha engatada nos últimos vagões,
como um Cirineu ajudando a composição a levar a cruz ao alto de um calvário
ferroviário.
Mas os trens não apitavam nas Sextas-Feiras Santas.
Passavam silenciosamente pelas estações menores, fazendo estremecer as casas
mais próximas e participando, com a sua mudez, da mudez geral, pois os rádios
também não tocavam, nem os sinos das igrejas: era uma pausa no ruído do
progresso e do mundo. Não chegava a ser triste, mas era diferente, doía em
algum lugar, por menos que se pensasse na paixão e na morte de um Deus
crucificado.
Joaquim Pinto
Montenegro, que viveria toda a sua vida em torno dos trens da Central, tinha
nas Sextas-Feiras Santas o seu grande dia. Era com orgulho que fiscalizava cada
trem que passava por Rodeio, estaçãozinha perdida entre os dois maiores túneis
do Brasil naquela época, o 11 e o 12. Não chegava a ser um homem religioso; na
verdade, pouco ligava para o drama antigo do qual tinha uma noção vaga e
descomprometida.
Achava que, como
funcionário do Departamento de Dormentes e Trilhos, cumpria-lhe tomar conta da
tradição que já encontrara quando, aos 20 anos, entrara como sinaleiro do
entroncamento que desviava as locomotivas no pátio de manobras, pouco antes de
os trens serem devorados pela bocarra escura do túnel 12, o maior do continente
na sua opinião e na de seus iguais do quadro efetivo dos servidores da Central
do Brasil.
Por isso, principalmente, a Sexta-Feira Santa era
um dia especial, diferente de todos os outros, pois os trens não apitavam, e
isso lhe exigia um esforço suplementar, embora nem trabalhasse nesse dia. As
locomotivas ficavam apagadas e imóveis como bichos que dormiam um sono de
ferro. O tráfego era menor em todo o percurso da serra do Mar.
Ele desfrutava o
feriado tomando conta dos trens que inesperadamente surgiam do túnel 11, sem
apitar, sem avisar que estavam chegando - e Joaquim Pinto Montenegro olhava com
emoção a comprida Mallet, made in England, que parecia uma viúva enorme e sem
grito, vencendo penosamente a garganta que a separava do comprido, do sinistro
túnel 12.
Joaquim Pinto Montenegro não precisava dos apitos
para saber quem chegava ou saía dos dois túneis, que formavam, na sua opinião e
na de seus iguais, as jóias mais preciosas da coroa de glórias da engenharia
ferrocarril nacional. Ele as pressentia milimetricamente. Pelo silêncio de cada
locomotiva, sabia o nome do maquinista, do foguista, do chefe do trem que,
naquele instante, deveria estar percorrendo vagões, avisando aos passageiros
que a próxima estação era Rodeio.
Joaquim Pinto Montenegro
não era religioso, mas respeitava a Sexta-Feira Santa como respeitava o código
de sinais que sabia fazer com as duas bandeirinhas, uma verde, outra vermelha,
orientando as pesadas locomotivas que obedeciam rigorosamente a seus
movimentos, parando quando a bandeira era vermelha, indo à frente quando era
verde. Nem a mão formidável de Deus, regulando o movimento dos astros no espaço
infinito, era mais solene e poderosa do que a de Joaquim Pinto Montenegro.
O último trem passava em direção ao túnel 12. Era
já noite fechada na serra do Mar, o barulho ritmado dos vagões iluminados
acentuava o silêncio geral. Era hora de Joaquim Pinto Montenegro fazer uma
coisa extraordinária na sua vida de guia e de protetor dos trens da Central do
Brasil.
Como todo mundo
naquela época, Joaquim não comia carne naquele dia santificado pelo silêncio
das locomotivas que cheiravam a carvão civilizado. Como todo mundo,
Joaquim comera peixe no almoço. E, como
todo mundo, sentia-se um pouco enfraquecido ao final do dia. Era necessário
suplementar suas energias com um prato de canjica que todos tomavam nesse dia,
como um sacramento, um alimento sagrado e permitido. Joaquim tomava sua canjica
com solenidade, com a mesma autoridade com que manobrava suas bandeirinhas no
pátio de manobras.
Tudo estava consumado, todas as leis e os costumes
do mundo tinham sido cumpridos mais uma vez. E Joaquim Pinto Montenegro poderia
dormir em paz, na paz do silêncio enorme que tombava sobre Rodeio, no silêncio
e na majestade das Sextas-Feiras Santas do passado.
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Folha de São Paulo, sexta-feira, 13/04/2001
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Tive muitos colegas, no Rio de Janeiro, que vinham de trem para estudar no centro, Capital Federal, naquela época, na
ResponderExcluirdécada de 1940 e 1950 a 52. Ouvi falar de Paulo de Frontin e outras estações de trem por lá. Lendo a belíssima crônica do Carlos Heitor Cony, acima, repassei na memória muitas daquelas passagens contadas por meus colegas passageiros de trem. Estudante de Letras, aprendia a observar e a descrever o quotidiano e suas observações me valeram muito em algumas redações e aplicações de figuras literárias. O linguajar deles também fascinava, diferente de mim, mineira recém-chegada da Zona da Mata mineira. Linda matéria, Engº Ferroviário, Dr. Cléber ! ! !.